21.7.12

XANGÔ DO POVO.....


A maioria dos rituais africanos praticados dentro do Rio Grande do Sul, vem do interior da África, principalmente das regiões da Nigéria onde encontramos as cidades de Ìlèsà, cujo povo é conhecido como da nação Ijexá e Oyó, a terra de Xangô, o Obá (Rei) de Oyó. No Brasil a vida útil do negro, escravo, era muito curta, pois passavam a maior parte de suas vidas trabalhando para seus servos; fora as epidemias e outras doenças, na época incuráveis, que acabaram matando centenas dos nossos antepassados. Devido a estas e outras dificuldades, nossos antigos sacerdotes acabaram levando para o túmulo muitos conhecimentos dos rituais sagrados africanos; Contudo ainda conseguimos guardar boa parte dos fundamentos das diversas nações vindas da África, berço histórico do Brasil; entre estes fundamentos temos a nação Oyó cujas tradições de seus rituais permanecem vivos aqui em Porto Alegre, e em algumas cidades do interior do estado. Para nós Riograndenses é um privilégio ter a presença desta nação, pois quase não se ouve falar de Oyó em outras partes do Brasil, pois raras foram as vezes em que os interessados na captura de escravos conseguiram atingir as localidades do interior da Nigéria, como as cidades de Oyó e Ilexá.
Uma das fontes da nação Oyó na cidade de Porto Alegre foi a Sra. Ermínia Manoela de Araújo, conhecida como mãe Donga de Oxum. Era filha de Oxum (Osun) com Ossãe (Osányìn); morava na colônia africana, nas imediações onde é hoje o Auditório Araújo Viana.
Dona Ermínia nasceu no dia cinco de maio de 1889, era uma negra de grande sabedoria, e seguia as tradições religiosas de acordo com o que herdou de seus genitores, que praticavam as culturas de Oyó e Ijexá juntos, já naquela época, até por que são nações de muita proximidade dentro do território nigeriano, inclusive a língua Yorubá é o idioma falado pelos dois povos, com apenas algumas diferenças no dialeto.
Nas aldeias africanas os assentamentos de Orixás eram feitos para servir uma comunidade inteira, até mesmo uma cidade, e toda população se dedicavam aquele Orixá cultuado na região; os assentamentos, os rituais, as obrigações ficavam de uma geração para outra; tem lugares que ainda hoje, conservam assentamentos de Orixás com quatrocentos anos ou mais, eu mesmo visitei um terreiro em Salvador que mantém um Xangô Ogodô, trazido da África a mais de duzentos anos. Foi esta tradição que deu origem ao Xangô Aganjú do Povo. As tradições deste ritual foram passados à mãe Donga, mas o assentamento do Xangô Aganjú do Povo foi feito pelas suas próprias mãos; e não é apenas um okutá de Xangô, é sim um conjunto de Orixás que mantém os assentamentos de Bará até Oxalá, que foram preparados para servir a comunidade inteira daquela família religiosa de tradição Oyó da bacia de mãe Donga de Oxum, e ser passado pelas gerações vindouras. E assim aconteceu; os assentamentos após passar por vários terreiros de Oyó, hoje estão, nas mãos de uma descendente direta de mãe Donga, a Yalorixá Nélia de Ossãe, que humildemente tem a guarda deste ritual. Antigamente era escolhido um axogum (Asògún), ou seja, um homem que teria a função de fazer o sacrifício dos animais para este ritual; um deles foi o senhor Mário Lopes, que após um derrame passou o cargo ao Sr. Rolim de Oxalá, que morou na rua Lucas de Oliveira, e antes de falecer passou a responsabilidade para o sr. Jorge de Xapanã; após sua morte não se teve uma pessoa exclusivamente para fazer os sacrifícios para Xangô Aganjú do Povo, hoje a responsabilidade da matança é da pessoa que tem a guarda dos assentamentos em seu terreiro, e a data da festa é sempre o dia vinte e dois de julho, que antigamente movimentava todo o povo de santo de Porto Alegre e arredores.
Ermínia Manoela de Araújo teve quatro filhos: Maria Rosaura de Araújo Souza, ficou conhecida como mãe Rosália de Xangô, nasceu em 8 de abril de 1911 e faleceu em 05 de agosto de 1989; Luiza de Araújo Souza, conhecida como tia Luiza de Ogum, nasceu em 25 de novembro de 1915 e morreu em 19 de julho de 1994; Mário de Araújo Souza, conhecido como Mário Bocão, filho de Odé, não temos certeza das datas de seu nascimento e morte; e a outra filha era Lurdes de Araújo Souza, cujo Orixá era Xapanã, também não temos certeza das datas de seu nascimento e morte. Dona Ermínia (Donga de Oxum) contraiu a gripe espanhola e faleceu em 1918, deixando os quatro filhos pequenos, tia Rosália de Xangô com seis anos e sua irmã Luiza de Ogum com dois anos de idade, e os outros dois filhos também pequenos. Em Porto alegre, foi criado um cemitério especialmente para as vitimas da gripe espanhola, que matou em todo país cerca de 300 mil pessoas.
O único filho de santo que Dona Donga de Oxum deixou pronto com todos os assentamentos foi o Sr. Antoninho de Oxum, que herdou além das tradições religiosas, também todos os seu filhos de ventre e de axé (filhos de santo).
Dona Donga tinha uma cunhada que também seguia as tradições da nação Oyó, chamada dona Leopoldina de Oxalá, que também passou ser filha de santo e auxiliar de Pai Antoninho, junto com uma outra senhora chamada carinhosamente de Velha, que também foi uma luz neste antigo terreiro. Antoninho de Oxum trabalhava fora e ainda arrumava tempo para se dedicar a inúmeros filhos de santo e consulentes que o procuravam; teve dois filhos carnais, e outros tantos de criação, entre elas dona "dona Maria Garçoneta" que morava nas imediações da Igreja Nsra. Do Trabalho, tive a felicidade participar de um batuque em seu ilê, na Vila Ipiranga.
Antigamente os babalorixás e yalorixás, além da prática religiosa, dedicavam-se à caridade, a maioria tinha muitos filhos de criação, inclusive se um indivíduo estivesse passando necessidades, era acolhido no terreiro até que tivesse condições de sobrevivência, aquele ia embora e já dava lugar a outro.
Hoje, em alguns casos, é difícil até mesmo a própria sobrevivência dos sacerdotes, já não da mais para seguir o exemplo de amparar os necessitados nos terreiros, a não ser os grandes marqueteiros que estão com os bolsos cheios, mas nem assim se prestam a este tipo de caridade.
A maioria do pessoal que escreve sobre a religião africana no Rio Grande do Sul, cita o Príncipe Custódio como introdutor dos rituais de Batuque aqui no sul, não é bem assim, pois o negro se faz presente neste Estado muito antes da família de Osuanlele (Príncipe Custódio) ser retirada em 1897 de Benin (antigo Daomé), já no censo da população do Rio Grande do Sul, feita no ano de 1814, nos mostra uma população negra expressiva perfazendo um total de 36,7% de afro-brasileiros, contra um total de 45,6% de brancos no estado, outro dado relevante é que pesquisadores, sérios, situam o período inicial do Batuque nesta região entre os anos de 1833 e 1859, na mesma época em que o Candomblé ganhava espaço na Bahia. O lendário Príncipe Custódio só pisa em solo gaúcho no ano de 1899, na cidade de Rio Grande, e já encontra aqui rituais religiosos de origem africana, popularmente denominada de Batuque. Ele contribuiu sim com nossa religião, com seus contatos políticos, pois Custódio, vinha de uma família nobre, sua saída da África foi política; ele sabia como se destacar e fazia bom uso de sua sabedoria religiosa, o que ajudou a travar as perseguições as casas de culto africano. As pesquisas realizadas para saber sobre as nações Oyó, Cabinda, Ijexá e Jêje nos comprovam que o Batuque se estabeleceu aqui no Rio Grande do Sul há quase dois séculos;
Ainda falando da nação Oyó outra contemporânea de mãe Donga de Oxum foi mãe Andrezza Ferreira da Silva, que foi pronta na religião por um velho babalorixá que ainda tinha a sua volta alguns africanos nativos, e ela teria vivido de 1882 a 1951 em Porto Alegre.
Dos descendentes religiosos da raiz de Pai Antoninho de Oxum, os que mais se destacaram foram: a yalorixá Rosália de Xangô, que morreu com 79 anos de idade; morou alguns anos na rua Souza Lobo, na vila jardim, onde tive o privilégio de participar de um ritual de Batuque em seu ilê; sua irmã de ventre e de axé que foi tia Luiza de Ogum que morreu com 78 anos, morou na avenida Saturnino de Brito, 408 na vila jardim, deixou dois filhos, uma é Nelia de Ossãe, que é quem mantém vivo o ritual do Xangô Aganjú do Povo em Porto Alegre, e o outro filho já é falecido. Outra mãe de santo que se destacou muito, uma das mais importantes, depois de Antoninho, foi a sra. Lídia Gonçalves da Rocha, popularmente conhecida como mãe "Moça de Oxum", que entrou para a religião africana aos cuidados de pai Antoninho de Oxum por motivos de doença e se tornou a mais destacada yalorixá da nação Oyó dos últimos tempos; podemos citar também, Cecília de Xangô Aganjú; mãe Leopoldina de Oxalá que era cunhada de mãe Donga de Oxum; Mocinha de Oxalá; Mário "bocão" se destacou como alabê (tamboreiro) da nação Oyó e também aprendeu a tocar Jêje com os aquidavis; Jorgina de Xapanã; Dilina de Oxum; mãe Manoela Mendonça de Oxum; Pai Máximo de Odé, que também era tamboreiro; pai Máximo de Odé também foi pai de santo de Tia Valesca, esposa de pai Antoninho; Mijica de Yemanjá; Benjamim de Oxalá; Camarada de Yemanjá; mãe Quininha de Oyá, mãe Andressa de Oxum; mãe Manoelinha de Oxum, mãe Miguela de Xangô, esta Yalorixá foi uma das ultimas a fazer durante os toques, a fogueira de Xangô, e paramentava todos os Orixás com suas vestes e indumentárias; A mãe Oxum de pai Antoninho também se paramentava quando "incorporada" em seu filho, usava suas vestes com muitas pedrarias. Doralice da Silva Alves, conhecida como Chininha de Oxalá, teve a guarda do Xangô Aganjú do Povo por vinte e dois anos, era casada com pai Máximo de Odé, ela também tinha o apelido de "Caquinha" e aprontou outros bons descendentes do Oyó como a mãe Vera de Ossãe e Sarinha de Xangô, que completou 60 anos de assentamento de seu pai Xangô no dia 18 de outubro de 2004; outros da raiz Oyó que podemos citar são as pessoas de Guilhermina de Yemanjá, que era cozinheira da casa de Antoninho, e também fez "pirão" na casa de muita gente antiga do Oyó; João Gumercindo Saraiva, esposo de dona Doralvina; Yatolá de Oyá, pai Darci de Oxalá, entre outros; Felisberto de Ossãe. Outras pessoas que também se destacaram na nação Oyó foram: mãe Apolinária Batista, Olga da Iansã, Fábio de Oxum, Tim de Ogum, mãe Albertina de Obá; Edelvira de Oxalá, pai Acimar de Xangô; Luiz de Bará; Paulinho de Xangô (filho de santo de mãe Rosália de xangô);; Esperança de Oyá; Toninho de Xangô, herdeiro espiritual de pai Acimar de Xangô. Vários informantes dizem que pai Joãozinho de Bará, também teve uma breve passagem pelas mãos de pai Antoninho de Oxum.
Pai Antoninho de Oxum morou no Mont'Serrat, na rua Eudoro Berlink, na cidade de Porto Alegre, e segundo consta faleceu no ano de 1932.
E mais recente, na história do Oyó, podemos citar alguns descendentes da geração de mãe Moça de Oxum, que também contribuem ou contribuíram para continuidade dos rituais de Oyó como: Laudelina de Bará; Valdomiro de Oxalá, alabê, Zeca Neto de Oxalá; Carola de Oxum; Eva de Oxum; Leinha de Oxum, (falecida em fevereiro de 2005) e Odete de Oxum entre outros.
Há uma outra grande raiz da nação Oyó que derivou de uma famosa mãe de santo chamada Emília fontes de Araújo, Mãe Emília de Oyá. Era descendente de uma família nobre da África, morou na rua Visconde do Hervalem Porto Alegre, era contemporânea de Antoninho da Oxum, porém não tinham ligações de bacia, apenas elos de nação. Segundo informações coletadas junto a Pai Paulinho de Agandjú, Mãe Emília faleceu por volta de 1930 e deixou vários herdeiros de seu ritual, onde podemos citar: Mãe Alice de Oxum; Pai Alcebíades de Xangô; Vó Dóca de Yemanjá que morava na av. Praia de Belas esquina com a rua Rodolfo Gomes, Mãe Matilde Fabrício, mãe carnal de Mãe Nenéca de Xangô, que também é herdeira espiritual desta raiz do Oyó; Mãe Cadinha de Odé; Mãe Araci de Odé, que faleceu com 112 anos de idade, e seu Orixá Ode tinha 91 anos de assentamento. Dona Araci fez um ritual de entrega de Axé de Búzios na casa de mãe Ilda de Obá no qual eu estava presente, e até então nunca tinha assistido algo igual. As obrigações do ritual fúnebre de mãe Araci foram feitas por Pai Paulinho de Agandjú, por recomendações expressas da própria Araci, que deixou gravado sua exigência. Eram também da casa de Mãe Emília as pessoas de Negrinha de Odé; Ramiro de Ogum; Dona Rola, esposa de Pai Alcebíades de Xangô.
Mãe Alice de Oxum, se destaca também nesta ramificação do Oyó, deixando vários herdeiros espirituais, entre estes podemos citar a mãe Nicóla de Xangô Dadá, que morou na rua Cuibá, 95 e faleceu em 1975 aos 69 anos de idade, vitima de derrame. Mãe Nicóla deixou vários filhos de santo, um dos que mais se destacou e ainda hoje cumpre os rígidos rituais de sua raiz é a pessoa que nos passa estas informações, Pai Paulinho de Agandjú, com 64 de idade, e seu Orixá com 50 anos de assentamento. Com a morte de Mãe Nicóla, terminou de aprontar na religião alguns de seus descendentes como, Pai Adãozinho de Bará, um dos principais alabês da Nação Oyó. Pai Paulinho fala com autoridade dos rituais que pratica, como a obrigação de Tumbê, Arikú e muitas outras que ainda mantém; e nos cita como sendo ordem de toque para os Orixás de seu terreiro a seguinte seqüência: Bará, Ogum, Xapanã, Odé, Ossãe, Orunmilá, Obokun, Xangô, Ibejis, Agandjú, Yemanjá,tim, Obá, Nana Buruku, Yewa, Oxum, Oyá e Oxalá.
Alguns sacerdotes nos dão a informação no tocante aos rituais de Batuque da nação Oyó, dizendo que a ordem de toque para os Orixás em seus terreiros seguem quase a mesma seqüência da nação Ijexá: Bará, Ogum. Oyá, Xangô, Ibejis, Odé, Otim, Obá, Ossãe, Xapanã, Oxum, Yemanjá e Oxalá; e outros dizem que as casas antigas de Oyó, tocavam primeiro para os Orixás masculinos, e depois para as Yabás (Orixás femininos) na seguinte ordem: Bará, Ogum, Ossãe, Xapanã, Odé e Otim, Xangô, Ibejis, Obá, Oyá, Oxum, Yemanjá e Oxalá. O fato é que há varias fontes da mesma nação, cada uma seguindo os costumes de seu terreiro de origem, muitos se vendo num segmento de nação pura, outras mesclando com outras nações, e assimilando outras práticas em seus rituais.
Das antigas nações africanas que se fixaram no Rio Grande do Sul, e que foram submetidas, a variados graus de mudança e assimilação, ressalta a do Ijexá como a que melhor conservou a configuração africana original absorvendo outras nações. Os sacerdotes e iniciados por mais antigos que sejam, nos cultos africanos no Rio Grande do Sul, na maioria, se mesclaram com o Ijexá, esse processo, entretanto, não eliminou de todo a consciência histórica e certas tradições religiosas que predominam tanto no Oyó como também no Jêje e na Cabinda; se alguém tiver alguma informação que possa nos ajudar no resgate a história das nações africanas no Estado do Rio Grande do Sul, por favor entrar em contato via e-mail deste site, pois toda informação é bem vinda..

8.7.12

NEGRO NANDO "parte 2"

( por João Carlos Deodé )


O tempo passou e uma bela tarde sem que ninguém percebesse, ele já sendo de casa entrou sem ninguém ver, passou pela cozinha e foi direto para o salão localizado nos fundos da casa, solito e Deus.
Todos na casa estavam na parte da frente, quando veio um som diferenciado do salão. Era o nego Nando tocando pros Orixás
Resultado: no fim da tarde mais de cem pessoas na frente da casa da avó perguntando se ela estava realizando alguma festa para os Ibejes. A beleza do canto das rezas, o toque daquele tambor, produziu um som que percorreu a vila toda, subiu morro, adentrou a cidade e encantou quem ouviu. Avó teve que pedir para ele arriar o tambor para acabar com a reunião do povaréu na frente de seu portão, e olha que ele tinha somente treze anos. Daquele dia em diante eu soube com a mais absoluta certeza que o nego Nando era um abençoado dos Orixás.
Nego Nando de Bará Lodê tornou-se meu tio de religião. Obrigação feita antes dos quinze anos, na qual tive o prazeroso encargo de ser o zelador nos sete dias que ele fez chão para seu Orixá.
Todos nós sonhávamos um dia nos tornar Babalorixá, usar uma guia imperial e ser tocados pela fama e poder. Ali no momento da consagração eu ouvi da boca daquele menino o que o trouxera para o Batuque
-Deodé eu vim para esta casa para servir os Orixás com minhas mãos e minha voz, eu vou ser tamboreiro, não tenciono ser Babalorixá. No que eu respondi Oxéu. Assim seja.
Nos dias que se seguiram à obrigação eu vi que realmente ele fora abençoado em suas preces, e os deuses ouviram seus pedidos.Pois na semana seguinte ele já estava sentado ao lado do tamboreiro da avó Jovita, Leopoldo de http://xn--yans-joa.No começo para tirar uma palhinha (tocar nos breve intervalos), para depois se tornar um dos melhores tamboreiros do Partenon. Ria feliz, havia concretizado seu sonho.
Nos meses que se seguiram sua dedicação ao estudo dos toques e das rezas foram aprofundadas.Ele dizia: “Tocar tambor qualquer um toca, mas eu quero ser o melhor”.
E foram anos de dedicação e busca de conhecimento, era uma época difícil, os melhores não estavam tão disponíveis assim. Ensinar não é uma coisa tão fácil e os que sabiam não tinham paciência ou tempo para dedicação aos mais jovens. Mas ele não desistia.
Às vezes me convidava a ir a um Batuque lá na Lomba do Sabão, tinha obtido uma informação que um famoso tamboreiro iria tocar uma festa. No que eu me negava, por duas razões, uma que não iria a Batuque sem a minha mãe Miguela de Bará Agelú e a outra que a distância era muito longa.
Na segunda feira nós encontrávamos, eu já sabia que teria novidade e informações de tudo que fora a festa.
E ai negrão como foi o Batuque?
-Não foi.
Como não foi! Tu disseste que irias.
-Fui, mas foi um horror, o cara maltratou o tambor e os Orixás.
Deixa de ser besta negrão tu ta te julgando o melhor.
-Deodé eu sou o melhor e não preciso que tu digas isso para me agradar, porque isso eu estou cansado de saber.
Na época não existiam livros discos ou alguma coisa que servisse de base para o estudo do som do Batuque tudo era aprendido de ouvido. Quem quisesse aprender tinha que viver socado dentro das festas e não tinha meio termo. Afora isto tinha que contar com os favores dos mais antigos, que se dispusessem a ofertar o tambor, o que ainda era a mais difícil. Independente disso a maioria das casas tinham seus próprios tamboreiros, feitos em casa. O novo gurnia ao lado do tamboreiro velho, seco para tocar e ver seus interesses frustrados ao fim de cada Batuque.
O primeiro passo era granjear a confiança do tamboreiro velho e da dona da casa, para no passo seguinte se achegar nos dias de festa e ficar a noite toda ao lado na espera de ver oferecida a oportunidade de tirar uma palhinha. Uma das técnicas usadas na época era tocar o agê e cantar sobressaindo à voz nas respostas das rezas, este destaque era o suficiente para chamar a atenção.
Até tornar-se conhecido e ter o nome reconhecido levava anos e ter paciência, coisa esta que o negro Nando não tinha. Ele tinha pressa, muita pressa, não era de ficar esperando todo este processo.
Sua marca registrada era a obstinação e a teimosia, duas armas que romperam com o preconceito e tabu que na época existia contra os mais jovens, pois ele viera para derrubar tudo que exista de relutância. Chegara sua hora e ele não deixou por menos, vim, vi, toquei e venci.
Naquele ano seu nome tornou-se lenda e os mais antigos tiveram que reconhecer seu talento e o brilho diferençado que tinha nas festas que ele tocava.
Tinha a porta de seu barraco os mais renomados Babalorixás a solicitar os seus serviços. Agenda lotada de compromissos para o ano inteiro, compromissos inadiáveis, marcavam uma carreira de sucesso e granjearam prestigio. Como toda a concorrência pode ser benéfica ou prejudicial, aquela mostraria com o tempo que ele por ser jovem não estava preparado para a fama. As pessoas começaram a ofertar melhores condições e a estas se somaram dinheiro e favores.
Resultado: deixou de tocar para os amigos mais pobre que não podiam cobrir as ofertas e participar do leilão para ter o seu concurso. Só tocava para os mais abastados, a burguesia, nos salões dos mais famosos, local onde tinha mais brilho, mais fartura.
No passo seguinte largou de trabalhar e passou viver do tambor e do que ele pode-se lhe render. Tornara-se um mercenário do som do Batuque, e para tê-lo só com grama alta e de preferência antecipada.
Como nos Batuques da avó Jovita de Xangô o dinheiro que era escasso e que ia parar na mão do tamboreiro era fruto do que era jogado pelo povo sobre o manto de Oxalá, estendido sobre a cabeça dos participantes, que era recolhido e entregue avó, que tirava parte para as despesas e parte para dar um agrado ao tamboreiro. Esta ficou fora da agenda do Negro Nando.
Por não ter cachê antecipado, a vó foi relegada para segundo plano. Resultado: nossas festas não tinham mais a participação do melhor tamboreiro do Partenon, mesmo este sendo cria da casa
De sua vida, pouco se sobe ou quase nada, mesmo que seu nome corre-se de boca em boca granjeando fama e sucesso, as festas de pai Xangô de vó Jovita não tiveram mais sua participação.
O tempo passou e um belo dia aniversário de pai Xangô, estava todos a espera de iniciar o toque, foi quando alguém avisou que o tamboreiro não vinha mais, fora levar a mulher para ganhar neném.
Naquela casa tinha muitos meninos que poderiam tocar aquela festa sem nenhum problema, mas nenhum tinha a responsabilidade e experiência suficiente para uma festa grande e aquela era uma destas. Todos estavam temerosos de entregar para um menino a responsabilidade de seguir em frente.
A vó me chamou em seu quarto e disse: Deodé tu pegas o Juca de Oxalá e vai aqui no sanatório Partenon e busca um tamboreiro que está hospitalizado ali.
fui ao Sanatório Partenon que fica localizado na avenida Bento Gonçalves a duas quadras da casa da avó. Cheguei na Portaria e falei com o guarda de plantão, expliquei quem me mandara ali e o que eu queria. Conhecendo avó, ele foi de uma gentileza impar, me mandou entrar e aguardar.
Desapareceu por alguns minutos e na volta pode ver que ele voltava pelo meio de uma alameda de árvore, cercada de jardim, com um outro homem. No escuro da noite não dava para identificar, mesmo porque era inverno e a pessoa tinha a cabeça coberta por um gorro e envolto no pescoço uma manta de lã.
A pessoa se aproximou e perguntou quem queria falar com ele.
Antecipei-me, sou eu João Carlos de Odé, estou aqui em nome da avó Jovita de Xangô.Tive como resposta seu cumprimento; “oi cara tudo bem, sou eu o Nando de Bará Lodê”.
Pasmado, boquiaberto e assustado, fiquei por breves segundo parado. Sim, era ele o meu menino, mas não era aquela figura que eu tinha na memória. Fraco franzino e tossindo a toda hora ali estava o meu ídolo, o escolhido pelos Orixás para o canto e o toque.
Foi, tocou e entregou a festa, mas não era mais o mesmo, era o principio da decadência, o inicio do fim.
Despediu-se e eu fiz questão de acompanhá-lo até o portão do Sanatório Partenon, era a caminho de minha casa.
Tchau Nando.
Tchau Deodé.
Nunca mais eu o vi, mas o que eu soube, de tudo que eu vira e ouvira, foi da boca da avó Jovita: “Deodé o som dos Orixás não é produto de venda, pois quem pensa que vai levar e abusar deste dinheiro, não sabe que ele se torna maldito, pois se ele for para comprar pão os Orixás dão, mas se for para cachaça e putaria não. Acredite meu neto que o castigo vem a cavalo e de mais a mais, quem toca para Orixá, não toca para Exu”.
E para concluir ela falou: “O que tu viu acontecer com O Nando foi fruto do olho grande por dinheiro e o resultado é que os Orixás tiraram a voz do Nando e junto a sua saúde, mas não te preocupe que ele vai ficar bom, eu cuido dele e toda a semana mando um rancho para a mulher e duas lindas crianças”.
Calei-me e fiquei a lembrar do que tudo que fora no passado o menino Nando de Bará Lodê. De sua promessa na hora da obrigação: “Quero que os Orixás me dêem voz e força nos braços, pois eu vim para servi-los como Tamboreiro e não Babalorixá”. Será?
Bem, passado é passado, vamos em frente que atrás do Bará Lodê sempre vem gente, ou melhor, todos os Orixás.
E tenho dito e quem souber que conte outra.

Bará o Lodê exu ecuo Bará lanã,
Exu o Lodê exu ecuo Bará Lanã.

João Carlos de Odé.

NEGRO NANDO "O TAMBOREIRO"

( por João Carlos Deodé )

O nego Nando não foi criado por sua mãe, quem verdadeiramente o criou foi minha avó Jovita de Xangô Agodô. Nego tinhoso, filho do capeta. Não é que aquele infeliz com sete anos fugiu de casa e veio bater com os costados nas cercanias da casa da avó.

Era costume das crianças ali do Partenon, na vila São José se acercarem das casas de religião. O Batuque tem esta magia estranha de atrair a criançada da vila, tudo por conta de que naquela época era costume criarem os cabritos na volta das casas. Sempre existia um bando de cabritos a pastarem nos pátios, a maioria amarrada com uma pequena corda em volta do pescoço.
Se existe uma coisa que criança adora é ficar olhando para as travessuras que os pequenos cabritos recém nascidos fazem, os animaizinhos correm, pulam e brincam faceiros. Uma recíproca atração entre as crianças e os cabritinhos, a mutua fascinação das crianças para as travessuras dos cabritinhos, estes correm felizes atrás das criancinhas. Aquilo era uma festa para a gurizada da vila, tendo em vista que não tinha televisão na época.
O nego Nando não tinha pai, sua mãe saia cedo para o trabalho e deixava o guri entregue para uma irmã mais velha cuidar. Resultado: foi só o moleque crescer um pouquinho para sair a perambular pelos becos e vielas da vila. Era um corre-corre atrás do nego Nando
. Aonde será que este infeliz se meteu?

Aprendeu cedo a se virar, alegre festeiro, brincalhão conquistava a todos, e seguia de casa em casa em constante visitas, filando um prato de bóia aqui, um pedaço de pão ali, descobriu os prazeres da rua, resultado passou a ser visita em sua própria casa.
Quando apareceu nas cercanias da casa da vó, fora atraído pelos cabritos que pastavam no pequeno campinho. Ali passava os dias a brincar. Oferecendo água aos animais, mudando a corda de lugar para que os cabritinhos pudessem alcançar melhores pastagens.
Até adentrar a casa demorou um pouco, receoso, com um certo medo e respeito pelo vozeirão e alguns gritos da avó Jovita.
-Deodé vem aqui.
-Pronto vó eu estou aqui o que a senhora quer?
-Deodé qual é o motivo da reunião desta cambada de guri na frente do meu portão?
-Sei lá vó, eu não convidei!
-Pois então, ponha para correr estes Ibejes do meu portão, quero tirar o meu cochilo da tarde sossegada.
-E lá ia eu mandar a gurizada embora, entre estes o nego Nando.
O Tamboreiro da vó nesta época era o Leopoldo de Yansãn, seguidamente aparecia para empachar alguns tambores, aproveitando os couros de cabritos de alguma obrigação. Numa tarde tirou para repassar algumas rezas e ensinar os moleques da vila a tocar tambor.
Foi numa destas ocasiões que o Leopoldo de Yansã estava tirando algumas rezas que adentrou o salão o nego Nando. Passou a porta e encostou-se à parede do salão, olhos arregalados e boca-aberta ficou estático de olhos fixos nas mãos do tamboreiro.

Não posso precisar ou afirmar de certeza, mas tenho para mim que daquele dia em diante nunca mais o nego Nando saiu daquela casa. Descobrira finalmente para que viera ao mundo: Para ser tamboreiro.
Passou a ser visita constante e depois de alguns meses se aboletou de cama e mesa, sempre tentando fazer sombra no cargo que até então eu ocupava na hierarquia daquela casa: ou seja, o de mandalete (guri para mandar buscar alguma coisa no armazém). Mais que audácia daquele exu! Nego desaforado querendo me destronar. Se pensar que vai ocupar o meu lugar esta muito enganado, daqui não saiu, daqui ninguém me tira.
Mas, o infeliz tinha pretensões maiores, queria o coração da vó, morada sagrada onde eu comia e bebia de graça, por onde transitava de chinelo de dedo. Bem, ai já é querer demais das benesses da vida e abusar de minha paciência. Decidi que botaria o nego Nando campo a fora.Pensei com meus botões: na primeira oportunidade dou-lhe uma sumanta de pau e ele nunca mais aparece.
Mas que facilidade! Como se isso fosse suficiente.
Ledo engano aquele nego era renitente.
O que não me impediu de aplicar varias surras no infeliz sem conseguir o meu intento, resultado: desisti. Até porque minha técnica demonstrou que quanto mais eu o sovava, mais avó se agarrava de amores pelo nego Nando. E junto aquela criança havia mais de dúzias, e se eu fosse correr todos a pancadaria, teria que bater na gurizada da vila São José inteira. Desisti.
Quando a gente não pode derrotar um inimigo alia-se a ele, e foi o que de fato fiz, passamos a ter um ótimo relacionamento, lógico que tudo que era tarefa difícil eu sendo mais velho, mandava ele executar.
Nos dias de sol quente ou dias de chuva, eu mandava ele ir correndo ao armazém, e lá ia o nego Nando em louca disparada, ia num pé e voltava no outro, eu logicamente, ficava esperando no portão, para a seguir pegar a encomenda e entregar para avó e dizer que fora eu que fizera aquela tarefa, só para ganhar elogios e alguma gorjeta.

Mas, se tinha uma coisa que me irritava era ver o interesse dos tamboreiros da casa pelo nego Nando. Todos sem exceção o adoravam e motivavam-no a tocar. Aquilo me irritava, pois eu não dava para o coro, de instrumento de corda eu não tocava nem sino de igreja, para o tambor minhas mãos eram uma completa negação. Ao contrario do infeliz: Pois era só dar qualquer coisa que fizesse barulho na mão do desgraçado do nego para ele fazer miséria, de caixa de fósforos a cavaquinho, passando pelo violão, pandeiro, agês, agogô, o nego Nando detonava.
Um belo dia um desgraçado de um tamboreiro teve a infeliz idéia de dar o tambor nas mãos do nego Nando. Pra que! Foi um Deus me acuda! No começo ele relutou em aceitar, fazendo corpo mole, ou como diria depois avó, depois de ouvi-lo tocar: “este nego se faz de porco guaxo para mamar deitado”. Foi só ele colocar o tambor no meio das pernas para nunca mais tirar.
Eu assisti a tudo aquilo com uma raiva danada. Cheguei a ponto de maldosamente comentar: que não era ele que havia tocado, mas sim algum espírito que baixara no corpo daquele infeliz. Tal a beleza, a magia e o encantamento do toque lúdico e inebriante que a todos encantou.
E espiem aqui e vejam bem, prestem atenção... Aquela era a sua primeira vez, um debutante no som do Batuque. Não é que o nego Nando parecia um veterano, com direito a floreios nas rezas e nas pancadas no tambor.